HOMILIA

Ao sabor da Palavra

V Domingo da Páscoa – O Pai das muitas moradas

É como se os cálculos estivessem todos errados e precisássemos de folhas novas, para fazer tudo do princípio. É assim que nos encontramos. Uns calculam a economia do país outros a crise sanitária, há quem calcule o regresso à normalidade e há todos aqueles que desejam viver sem contas a prestar. Nós calculamos o que tudo isto implica para a vida da comunidade. A nossa morada está de portas fechadas e calculamos a sua abertura. Mais do que abrir a Igreja ou a possibilidade de celebrar com os fiéis presentes, estimamos os corações que não se deixaram confinar pela pandemia e pela oportunidade de viver de forma mais individual a sua fé.

Os discípulos diante do anúncio da paixão de Jesus ficaram sem saber que contas fazer. Jesus anunciara a traição de Judas e de Pedro, que estes tentariam outras contas, mas sem o resultado desejado. O erro está nisto mesmo, em transformar tudo em contas. Nós somos mais o mistério que nos habita do que as contas a fazer para que tudo se acerte.

A primeira comunidade da Igreja nascente estava a entrar em ruptura porque nem todos se sentiam acolhidos de igual forma. Tudo o que tinham feito até então era bom, mas já não respondia à realidade. As necessidades eram muitas e os Apóstolos encontravam-se assoberbados por imensas tarefas. Em ato de contrição, reconheceram que as suas energias faziam/ passavam uma tangente ao desejado. Precisavam de uma incisão: aprofundar a morada, para que todos se sentissem acolhidos e procurar novos lugares de encontro, levando a que a sua mesa fosse alargada e desse lugar a muitos mais. Uma mesa para todos implica que cada um seja um lugar à mesa para mais convivas. O desafio é a humanidade inteira. Haverá muitos para atender, as necessidades serão diversas e todos precisavam de aprofundar a vivência do seu batismo.

Uma experiência exemplar, para todos os tempos, que pode ser retirada da comunidade nascente, passa pela permanente reconfiguração e reforma da comunidade. Quanto mais atendiam, mais cresciam em comunidade, mais serviços geravam, mais precisavam de todos e que todos se implicassem no pouco que fossem capazes. Assim viviam e concretizavam o reino de Deus. Mais…viviam a vida eterna! Para a comunidade nascente, a vida eterna não era incalculável, uma ideia ou algo para um futuro longínquo. A vida eterna era real, estava a acontecer entre eles, na medida em que a sua vida se fazia uma doação.  Habitavam as palavras de Jesus e sentavam-se à mesa do pão que se repartia como resultado da inabitação de Deus.

As comunidades, e a Igreja em geral, encontram-se há já algum tempo confinadas: com muitos trabalhos e poucos resultados. Não por causa da pandemia, mas por viverem como Tomé, vivendo na vizinhança de Jesus, mas nem sempre com a disposição para habitar a sua morada. Longe vão os tempos em que os discípulos escutaram o convite para ver onde morava o Senhor. Deixaram passar esse primeiro entusiasmo que os marcou profundamente e passaram a fazer as contas que mundo faz, sempre na lógica das vantagens e do mérito. Há que voltar a esse primeiro momento dos dois Apóstolos, que foram para casa de Jesus e ficaram com Ele, e da comunidade nascente que, para ter um lugar à mesa para todos, diariamente reconstruía a casa para que mais entrassem e em comunidade vivessem ao serviço de todos.

A missão é uma obra imensa. Jesus iniciou-a sozinho, depois chamou os doze, depois os setenta e dois e agora a cada um, para que a humanidade seja uma só. Só o será se todos viverem a sua humanidade numa dimensão sacerdotal. Há quem calcule o que vai perder ou o que poderá ganhar. Há quem calcule os meios que são precisos para uma tarefa desta dimensão ou quem insista que não há meios suficientes. A nossa visão é ainda muito meritocrática e tem pouco ou nada do reino de Deus. Calcular é colocar as premissas erradas, porque pensamos num poder fazer, quando tudo se trata de deixar fazer. Tudo tem de ser mais do âmbito da graça do que da eficiência. Jesus recusou todo o poder e apenas procurou amar. O amor não tem poder. O amor é o absoluto não poder. É a possibilidade de se inclinar e de servir e assim encontrar mais uma morada onde Deus habite sempre.

Há quem prefira um Deus distante e austero, verdadeiro patrão da vinha ou juiz do universo que premeia os bons e castiga os maus. Nada humano. Não é este o Deus das muitas moradas. O Deus de Jesus é o Pai que espera à porta de cada morada para sair e abraçar, caminha connosco ao longo da vida para que o nosso coração se abra e deixe sair a vida que nele habita. Há um caminho para a vida pela verdade e a verdade é que não temos a vida em nós. É um dom permanente, nunca dado e sempre a ser recebido, para que não fique escondido ou enterrado com medo de ser investido. O Deus de Jesus faz vir o sol sobre bons e maus, porque a todos ama, a todos concede a vida e a todos chama à vida em abundância. É o Deus das muitas moradas, tantas quantas as vidas.

A dificuldade por que passou a comunidade nascente é a mesma por que passam as comunidades de hoje e a resposta do Espírito é sempre a mesma, na criatividade exigida pelos tempos. As comunidades do Ponto e da Frígia, comunidades de segunda geração, sentiram que tudo se resumia a construir um templo espiritual ou, dito em palavras mais ao nosso alcance, uma humanidade em comunhão e que, para isso, precisavam de vidas sacerdotais. Esta é a missão de cada comunidade e de todos os cristãos: caminhar para a humanização numa vida sacerdotal. Só há verdadeira humanidade quando colocarmos de lado o mérito e fizermos da vida aquilo que ela é: um dom. Aqui não contabilidade nem cálculos, há tudo a viver como dom. Já não vivemos confinados. Neste tempo de confinamento global não podemos deixar que a globalização deixe cada um confinado no seu egoísmo.

A nossa fé é na vida e a vida só é verdadeiramente vivida na fé. Só na fé há caminho na vida e para a vida. Um caminho para a plenitude, para a humanização. Deus não criou deuses, mas homens e mulheres e só nos pede que sejamos isso mesmo e, ao sermos isso, revelamos a Deus. Jesus não quis ser Deus. Essa foi a grande tentação que passou no deserto, mas o Seu caminho foi o de ser humano e quanto mais humano, mais Deus se via: “Quem Me vê, vê o Pai.” Vê o Pai das muitas moradas, que faz caminho humano em Jesus, como mistério de salvação. Faz-se para cada ser humano, no desenvolvimento das suas dimensões fundamentais, em cada circunstância da vida, fundamento da dignidade inalienável de cada pessoa. Jesus  fez-Se Homem em Jesus, sem deixar de ser Divino, para que cada pessoa chegue a ser como o Filho de Deus sem deixar de ser humano, caminhando para a plenitude da humanidade, fazendo da sua vida uma existência sacerdotal.

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