HOMILIA

Ao sabor da palavra- II domingo da páscoa

Os dias passam e continuamos a viver este confinamento. As notícias já são outras. Mais animadoras. Vemos uma luz ao fundo do túnel. Só ainda não sabemos como vamos encontrar o mundo, depois de sair do túnel. Celebramos a Páscoa há oito dias e  com uma intensidade a lembrar a primeira vez. Recordamos com muita emoção o que vivemos no tríduo pascal e no dia de Páscoa. Foi a primeira experiência de uma Páscoa sem nada de exterior e tudo muito no diálogo íntimo com Deus. Foi um dia de alegria. De seguida voltamos à normalidade do confinamento, nas nossas celas domésticas. Nestas celas cheias de tudo também fizemos a experiência do vazio: a ausência daqueles que amamos.

Os discípulos viveram os dias que se seguiram à Páscoa com a luz cintilante da ressurreição que irradiava do sepulcro. Não são dias fáceis. Tudo está em aberto. Não há respostas e a mesma a experiência de alguns ainda não é resposta para outros. A experiência do Ressuscitado não é igual nem sincrónica, não é anacrónica, mas também não é temporal. Não é uniforme, mas é unitária. Constrói comunidade na medida em que cada um se deixa nas mãos do Espírito que afaga os corações, cura-os das suas dores e disponibiliza-os para acolher o Ressuscitado

Nem sempre é fácil pôr a mesa, muito menos servir à mesa. O serviço é a mais alta dignidade, o que mais nos aproxima de Deus. Nem todos os discípulos estão desocupados dos seus ideais e esquemas para se sentarem à mesa. O discípulo Tomé, gémeo de todos nós, vive preenchido com tantas certezas que precisa de todas as provas para voltar a confiar, para voltar a sentar-se à mesa onde a vida é servida. Tomé é o caminho de todos os crentes que ainda não o são plenamente e de todos os descrentes que não se acomodam a uma resposta fácil. Tomé dá uma resposta fácil, mais de descrente do que crente. Só vendo… só tocando… só com provas. Tomé passa uma semana assim. Tomé teima na sua certeza uma semana, talvez anos. Ele nega-se a ceder, a confiar e a avançar. Ele é gémeo de muitos. São agnósticos e até ateus. Ainda não viram nada que os convença. Não encontram autenticidade suficiente que permita sair com confiança para tomar lugar à mesa. Negam e essa negação é fruto de muitas dores acumulados, desilusões vividas e falta de autenticidade na vida da comunidade. Não é só Tomé o descrente. A comunidade, quando deseja impor uma certeza ou uma doutrina, vive confinada na mesa que faz e não se dispõe na que recebe para fazer a vida na memória do Senhor. Vive mais preocupada com a doutrina e o catecismo do que com proporcionar uma mesa onde o Senhor serve a graça do encontro com o Ressuscitado.

Para a comunidade dos discípulos todas as certezas ruíram. A morte era um facto inultrapassável. A morte venceu a vida e a mesa ficou vazia. Mas algumas notícias dizem que não é assim. Há uma outra forma de pôr a mesa, nos pratos vazios, para que estes se encham de vida. Esta aprendizagem exige comer na solidão de quem tudo perdeu e, tudo o que tem, de nada serve se não for para servir quem nada tem. Só uma mesa para todos é lugar servido pelo Senhor. Esta mesa é a do Senhor e para nós é comunhão. Não é possível que cada um o faça por si. Tomé tenta afirmar o seu dogma. Se não tocar… A sua fé fica-se pelo lugar de Jesus na história. Foi um homem extraordinário. A transcendência de Tomé não é capaz de mais. Tem uma grande admiração por Jesus, como homem que passou fazendo o bem, mas não está para embarcar em mais ilusões. Ele predispôs-se a ir com Jesus e morrer, quando Jesus falava do sono de Lázaro. Fugiu quando Jesus foi preso.  Agora não está pronto a acreditar em algo que não pode provar. A sua transcendência revela-se curta, do tamanho das suas certezas. Para ele, a morte é o facto que tudo define e a vida não transcende os dias em que está confinada. Tomé não consegue confiar na vida para lá do confinamento existencial.

A comunidade continua a pôr a mesa e a convidar  a todos para se sentarem à mesa. Tomé também é convidado, mas nega-se a sentar-se, a acreditar. A comunidade continua a trazer para a mesa o pão para partir e, no partir do pão, celebrar o perdão recebido. A transcendência do pão, que, partido, faz mesa para todos. Tomé prefere ser ele próprio a partir e a distribuir como julgar melhor. Ele não acredita que seja preciso estarem todos reunidos, à mesma mesa, para partir do pão que parte os dias além de todo o confinamento. Tomé não precisa de rituais nem de uma comunidade. Basta-lhe fixar o bem que Jesus fez enquanto viveu.

A comunidade parte o pão para se alimentar nas suas dificuldades e fazer, das fragilidades de cada um, um alimento que vence a estreiteza da cela em que a vida é confinada quando meramente contada pelos dias. Parte o pão porque reparte as feridas, alimenta-se do pão porque toca as dores de cada um como Jesus fez. Neste tocar fortalece a fé e mais em comunhão vive. Tomé não tem com quem partilhar nem partir o pão. Ali não há feridas, não dor, nem desilusão. Tomé vive com Jesus até à hora da morte, mas não aceita a morte da ideia que tem de Jesus. Exige tocar na morte de Jesus para acreditar que a morte não vence.  

O convite que a comunidade faz a Tomé, quando lhe comunica a experiência que faz do Ressuscitado: “Vimos o Senhor”, é para que toque a morte do Senhor na condição mortal de cada um. Tocar as chagas, as feridas, a humanidade do Senhor na humanidade dos outros. Abrir a mesa, para que todos se sentem, é partir o pão por todos. A transcendência será tão maior quanto mais disponível a pessoa estiver para partir o pão, para se sentar à mesa de todos os que o Senhor convida para cear consigo. Ele está à porta e bate e entra para cear com todo aquele que abrir a porta da sua vida. Acreditar em Jesus passa pelo toque nas feridas de todos os humanos e pela experiência do perdão, como amor que vence a morte. Tomé sabia que a morte tinha vencido, por isso retinha para si a ideia do Jesus vivo, mas não sabia do amor que vence a morte e estava a vencer na comunidade. A vencer o confinamento.

As feridas são tudo aquilo que não está bem assumido por cada um e que sangra, que ainda não está perdoado e que, por isso, impedem de trazer o outro à vida. Quando assim é, preferimos não nos encontrarmos, não encontrar lugar, sabotar a lógica da mesa. É fragilizada a nosso estrutura interna e amarga qualquer situação ou relação. A nossa essência é de comunhão, por isso é preciso fazer mesa para todos, como narra Isaías.

Não é fácil voltar acreditar depois de uma desilusão. Não é fácil voltar a confiar depois de uma traição. Não é fácil partilhar depois de uma frustração. Não é fácil acreditar no humano depois de experimentar o quanto se pode ser desumano. Esta é com certeza a maior incredulidade de Tomé: a bondade do humano, a capacidade para ainda hoje fazer maior a mesa. Ele confia em Jesus e Jesus é um homem bom, por isso prefere ficar com este ideia do que procurar a humanidade que Jesus toca. Tomé nega-se a sentar-se à mesa, a deixar as suas ideias e a encontrar-se com a sua própria humanidade, aquela que desiludiu, traiu e frustrou Jesus. Tomé exige tocar, mas precisa de ser tocado pelo Divino curador, que sara do orgulho e da arrogância com o Seu perdão. Quando perdoamos aos outros, assim como fomos perdoados, Jesus vence em nós o nosso confinamento na morte. Ele faz-nos amar com o amor com que nos ama e com esse amor vence a nossa morte.

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