“Alegria da dúvida”,  Isabel de Sá

Há livros e livros… e livros e outros livros e há os livros que nos fazem felizes…

A vida faz-nos crescer com os livros por companhia. Parece que não confiamos em mais nada ou ninguém à medida que perdemos amigos, ilusões, esperanças, movimentos, territórios, a não ser nos livros. Com o tempo, o tempo, esse que nos faz também conquistar idades, fronteiras, alargar horizontes e nos integra no natural onde a razão vai dando lugar ao sentimento… quantas vezes mostrando o animal que trazemos, a beleza torna-se assombro, a dúvida multiplica-se com o dia que tolhe e a vontade… as vontades esperam sem ânsia pelo belo que agora é outro tal como sempre foi…mas não sabíamos disso, tal como é a juventude que muitos vivem, outros acabam por perder… sem saber, sem viver, sem tempo…. Enfim sem dúvidas… Sem Vida.

Nunca esqueci o teu rosto quando nos perdemos entre os canaviais desta vida, hoje transformados em indústria. O amor ali conquistado nunca se industrializou na realidade, nem o território, nem o símbolo, nem o lugar… apenas, anos mais tarde, percebemos que é o tempo quem nos ensina, a ler e a lembrar, enquanto o homem se perde na produção de um nada pouco consequente. O tempo prepara-nos para voltar à terra…ao canavial, à duna ou ao mar. É o tempo que nos domina e talvez fique em nós a batida de uns loucos que o querem dominar. Sem esperança. Apenas com uma convicção, que o tempo parece tornar pouco relevante, porque aparentemente — porque fugaz parece ser o perpétuo esquecimento. Neste processo que o tempo nos alimenta, nada somos; talvez frieza, talvez razão… e por isso nos tornamos pouco verdadeiros, como o tempo que nos persegue: Só a razão mente, só a poética é verdadeira… “A atitude divina é antirracional” disse Pascoaes e nunca um livro foi razão pura…. Nem a “Bíblia”, nem a “Eneida”, nem o ”Mau tempo no canal” que me lembre…

Que raio de coisa é a água” leio, sem me deter, num livro que resisto; noutro recupero que “ O indizível aspira desesperadamente pelo dizer” e assim navego por entre linhas… muitas… interseto e confronto ideias e, aparentemente, só aparentemente, sem qualquer respeito ou emoção.

Nenhum livro me pediu para ser escrito. Não são meus, e eu não sou deles. Estamos bem sempre. Não temos lógicas, nem pactos, nem a razão nos assiste. Frequentemente, sempre nos gostamos de encontrar, nas nossas múltiplas páginas que ambos escrevemos… Por vezes, as palavras são diferentes… apesar de iguais, mas nem os dias, nem as horas, nem os lugares são os mesmos, nem as páginas, nem o antes, nem o depois, por isso o livro é matéria viva…. Nunca leio com o mesmo sentido e penso que o livro nunca me lê, nem vê da mesma forma. E, enquanto o leio, outras e tantas vezes… cruzo a ordem, subverto o andamento, percorro-o como um quadro… livremente, sem disposição, sem início e sem fim, lendo-o de cima para baixo, da direita para a esquerda, de trás para a frente e de muitas outras maneiras que a vontade e o momento me oferecem…

É um código que estabelecemos como velhos amigos e não precisamos de nos explicar muito mais do que existir e isso basta… Existir basta, e existir é duvidar… e duvidar é um instante!

A “Alegria da dúvida” de Isabel de Sá… uma antologia poética organizada por Graça Martins – artista plástica – é um sopro dessa existência que Deus nos ofereceu… sem procura de razão e, por isso, se apresenta próximo do divino, desenterrando em cada linha, em cada poema, o “verão que há no corpo do nosso inverno“ como só os grandes poetas sabem fazer. E há muitos invernos, outonos, primaveras dentro dos corpos que somos e dos livros que habitamos. A “Alegria da dúvida” será talvez, um dos mais confiáveis e confidentes livros em que nos podemos deitar; são lençóis de palavras em bordados de vida… lições e viagens… amor e dúvida, concertos e desconcertos, morte e enterros… braços que se tornam asas e que voam, linhas que nos amarram a um Deus que dança e ri. Ri de si próprio e de nós. Das memórias que importa reter, do esquecimento que nos liberta, da imperfeição que nos assiste, das vísceras que nos fazem doer, e do desejo do outro, de ti… de nós… entre os canaviais que todos temos para revisitar…

Este é o livro em que me perco por agora … Este é o livro onde satisfaço, hoje, neste longo quotidiano, os caprichos da Dúvida e, talvez por isso, o livro que sem a dúvida me faz feliz.

Nuno Lacerda Lopes

Imagem de StockSnap por Pixabay 

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