HOMILIA

E se os passos do caminho por onde desenrolo a vida não passarem por Emaús? Posso até já ter ido mais longe na desilusão e na frustração e não acertar com o caminho de regresso para Jerusalém. O desencanto enrola-me em devaneios. Será que mesmo assim tenho um estranho a caminhar comigo? Tenho quem me aqueça o coração nas horas de solidão ou de ceticismo?

É sempre difícil tocar a morte e esta tem sempre uma forma de enrolar a vida e dissimular caminhos que desviam o andar para Jerusalém, de nos levar muito além de Emaús. Os discípulos não quiseram tocar a morte e não permitiram que a morte tocasse os seus sonhos. É por aqui que dois dos discípulos regressam desanimados. Os seus passos ficam-se pelo abatimento e pela lentidão do coração. Os meus, por vezes, parece que passam Emaús e fazem um caminho com a longitude da morte. Tanto que se pretende fugir que a distância se faz mortal. Mas, ainda assim, há quem saia ao meu encontro para me incendiar o coração? Há quem se faça suficientemente íntimo da minha distância para que acerte com a proximidade que traz a vida? Só na proximidade há vida.

Não sei como regressar à Jerusalém de Jesus. Mas também não é isso que Ele me pede. Pede-me que avance para a minha Jerusalém: a minha páscoa, onde Jesus passa e me faz passar da distância para a proximidade. Talvez já tenha ido mais longe que Emaús. Passos de pão partido e que se aprendem à mesa. Não conheço os passos que me levam ao Cenáculo e me fazem ficar ali com todos à espera de Jesus, para que mais uma vez parta o pão. Ele também só pretende que regresse a casa e, à mesa da minha vida, parta o pão de cada dia. E se não souber como me sentar à mesa da  vida, onde Jesus se dá a conhecer como ressuscitado, ao partir do pão?

Tomo o desânimo como caminho e este enrola a esperança. Sempre caminhei e, agora, este caminho traz-me as dores dos passos dados para tão grande distância. Já estive em Emaús, por diversas vezes. Já senti e já gritei bem alto: tu estás aqui. Mesmo assim os meus passos não deixam que, depois do pão partido, na cruz, ainda haja mais qualquer coisa para partir, para partilhar.

A morte abre sempre abre o seu armário e recolhe a vida? Sem vida o que podemos partilhar? Pouco. Muito pouco. Apenas uma coisa: os passos que nos levam para tão longe. Esta é a partilha dos discípulos para com Jesus: os seus passos perdidos que os levam para Emaús. Jesus caminha com eles porque só uma coisa o faz caminhar: o amor. Só este o leva a Jerusalém e, depois de tudo, continua a levar a todos os discípulos que regressam ou foram além de todo o regresso possível.

Só o amor faz caminho em nós. Enquanto há amor há caminho. O amor é o grande peregrino, é o estrangeiro que procura em todas as distâncias as proximidades que vencem a morte. O amor é incessantemente estranho nos nossos caminhos, mesmo se estes nos levam para lá de Emaús. Depois de sentir o coração a arder e de experimentar a presença do amor, que abre caminhos para que o pão se parte sobre a mesa, há quem tenha continuado na distância, como eu, que pouco ou nada sei da proximidade.

Quando alguém aprende a partir o pão sobre a sua mesa, vence a morte da solidão, da cruz, e esta passa a transformar a distância em proximidade. Jerusalém é onde se aprende a morrer para que tudo se faça proximidade. A nova geografia de Jerusalém é o espaço onde a distância se transforma em proximidade. E os discípulos que regressam a casa, saem de Jerusalém, para encontrar em casa a sua Jerusalém: o partir do pão em Jesus. Por mais distantes que se deem os passos, o caminho do amor encontra as suas tangentes para caminhar comigo, connosco e ali, na breve pausa das fugas, volta a acender o coração para que, ao partir do pão, os passos se apressem para Jerusalém. A nova geografia de Jerusalém faz de Emaús uma cidade sem código postal, porque, a qualquer momento, o Senhor dirige os Seus passos para que o nosso coração arda e, mais cedo ou mais tarde, se incendeie com o amor. Só o amor nos fará peregrinos de todos os homens, para que todos os encontros sejam Emaús.

Nos nossos dias, são muitos os que se afastam da comunidade, como os discípulos se distanciaram de Jerusalém. Não têm provas, nem veem na comunidade autenticidade na proximidade. Ainda há muita distância, nem todos sabem ou desejam aprender a partir o pão. O pão parte-se no perdão. Depois de tudo, é esta a palavra de Jesus em cada mesa da Eucaristia e, se não for esta a palavra, a mesa fica vazia. Talvez não seja só agora, por causa do confinamento, que as igrejas ficam vazias na hora de partir o pão. Também não sei se isso é o mais importante. Importa que os corações estejam disponíveis para se encontrar, em Emaús, o espaço do encontro. Não uma só vez, mas todos os dias, para que os passos encontrem Jerusalém na justiça com que vivem. Depois sim, muitos encontram as razões para se sentarem à mesa e partilharem o mesmo pão. Há quem prefira não fazer nada para não errar. Há quem queira apenas estar à mesa, com medo de sair de casa, nem a Emaús regressou. Há quem não queira estar à mesa para não perturbar. Há quem só queira a mesa de quinta-feira santa, nem a de sexta nem a de sábado. Há quem sinta que a mesa não é espaço de encontro e que a distância continua a vencer. Há quem fique à espera dos oito dias depois e não queira a mesa onde é servido o pão deste instante tão passageiro, por onde passa o peregrino estrangeiro. Os passos que levam a direção da indiferença fazem a mesa vazia. O caminho do amor é sempre estranho, faz a sua mesa no coração despejado da esperança, hoje e depois, sempre. E assim o amor faz-se Emaús e Jerusalém nos corações que, simplesmente, ardem pelo perdão recebido.

Não são poucos a sentir a necessidade do pão ser partido. Precisamos de homens e mulheres que saibam onde está a mesa, onde o pão se parte. Com mãos que partem o pão, os corações caminham para a misericórdia. Todos os que ardem por justiça sentem que, por mais pequena que seja a mesa, há sempre lugar para mais um, que entra e se senta. Há lugar para a comunhão e esta mesa tem todos os lugares disponíveis, porque a justiça faz incendiar qualquer coração para lá de todas as medidas, de tal forma que Jerusalém e Emaús passam a ser o mesmo lugar, o lugar de todos.

Quando nos tiraram tudo com o confinamento, descobrimos a importância da mesa, dos abraços e do estar em família. Uma vida que não é partilhada não tem sentido. Uma vida que não é refletida não passa de factos sem soma que lhe dê sentido. Jesus só pergunta aos discípulos pelas palavras com que fazem o caminho para Emaús. Apenas os faz ler os acontecimentos para que saiam do nível factual e passem para o sentido de tudo. A pergunta de Jesus faz com que façam um outro caminho que os leva até ao coração. Até aos seus sonhos mais profundos. Eles confessam que esperavam que Jesus viesse a ser Alguém. Estão à espera de alguém que desbloqueia as suas vidas e as vidas do povo. Também nós estamos à espera da palavra que nos diga para sairmos, para voltarmos à normalidade e regressarmos ao convívio com os nossos. Será um tempo para nos sentarmos à mesa e partilharmos as nossas vivências. Também será dia de Páscoa.

Os discípulos de Emaús contam o que está enrolado na decepção. Fica apenas a recordação do bem que Fez, mas mais uma vez a morte tudo venceu. Jesus ajuda-os a desenrolar as recordações e a torná-las vivas. Nós também vamos precisar de uma mesa onde somos encontrados por Aquele que nos desenrola da dor do que perdemos, do que não vivemos e do que não fizemos. Com Ele descobrimos o sentido de tudo e tudo tem outro sentido como é sentido à mesa. Há que regressar à mesa, há que saber esperar e acolher por aqueles que ainda não estão à mesa.             Todos os que passam para lá de Emaús e deixaram de viver os momentos de encontro com Jesus nos caminhos da vida e que, neste confinamento, sentiram que Jesus sempre caminhou com eles, que venham de novo até Emaús. Até essa vivência da presença de um coração que arde e clama por justiça e por uma mesa com um pão para todos. Precisamos de regressar a Emaús para juntos caminharmos para Jerusalém.

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