Ao Sabor da Palavra | IV Domingo

Uma pergunta inicial. No princípio de tudo está a pergunta. Está o perguntar-se. É aqui que tudo começa, no diálogo entre os discípulos e Jesus: “Mestre onde moras?”; “Vinde e vede”, diz Jesus. Esta pergunta continua em mim, a desenvolver-se, desde essa hora em que fui e fiquei. Habito esta morada onde o coração aprende a acolher a resposta de cada dia. Não só hoje, não de uma só vez, mas, à imagem do tempo lento do coração, tenho de aprender a abrir a minha morada. Faço parte deste perguntar de sempre, com todos aqueles que aprendem a abrir de par em par as portas da humanidade para caminhar até à piscina de Siloé. De pergunta em pergunta, Tu, Senhor, fazes-me nascer na resposta: não tem que ser assim. Esta não é a palavra definitiva sobre a vida, sobre cada um fechado nas trevas do mal e sem liberdade para dar a sua vida. A palavra definitiva virá quando for mergulhado definitivamente nas águas de Siloé, para que se manifeste a glória de Deus. Esta é o homem vivo, ensina-nos Santo Ireneu de Lyon, e a glória do homem é ver a Deus, é estar banhado pelo Seu amor. Só o vê quem pergunta e quem tem tempo para aguardar pela resposta. Este é caminho que os discípulos realizam até à Páscoa da ressurreição. Esta é a resposta de Deus.

A grande pobreza é de quem não pergunta e passa indiferente ou com a resposta pronta na boca. Esses vivem na alta cidade de Jerusalém, conhecem de cor a Lei e os Profetas e tanto conhecem que sabem todos os pontos de fuga, para não se questionarem na profundidade. Há sempre a possibilidade de se desculparem ou de se pouparem, por não se questionarem. Talvez uma das maiores violências, que faço à minha humanidade, seja não deixar que ela nasça todos os dias no questionar-se, no perguntar porque é que é assim. Só me deixo questionar verdadeiramente quando desço à realidade, quando permito que a couraça dada pela cultura ou pela educação seja posta em causa. Descer à realidade é não ter certezas, apenas a vida onde tudo se decide. Diante do outro posso perguntar porque é que é assim, passar indiferente ou com a resposta pronta.

Os pais do cego preferem ficar na indiferença, a questionarem-se verdadeiramente sobre como o seu filho passou a ver. O medo é assim, impede-nos de viver, de aprofundar a vida e prende-nos na diversão, onde nos poupamos e já não nos comprometemos com a realidade e com o que ela tem. Não é para ser assim. Os fariseus têm a resposta pronta na língua, não obedecem às leis, não seguem os critérios, a exemplo de qualquer homem preso à sua racionalidade e que tudo justifica com as leis do mercado ou da ciência. Preciso, Senhor, de abandonar a indiferença, de me abandonar nos teus braços para que, nas mãos do Divino Oleiro, as escamas da educação ou da formação e todas as razões que dou para não me dar, sejam retiradas. Só assim me posso comprometer com Jesus e com todos os que sofrem no mundo. Na indiferença há uma imensa violência. Tu, Senhor, conheceste o Teu Filho desfigurado na cruz das violências desumanas. Nem sempre me conheço a mim, nem sempre reconheço o outro na sua fragilidade e poucas vezes estou disponível para descer à Piscina de Siloé, onde posso lavar-me de tudo o que me impede de amar. Cego comigo próprio: com os objetivos a alcançar, com as imensas e grandiosas tarefas a cumprir, com tudo o que me faz subir até à cidade dos doutores que Conhecem a Lei e os Profetas, mas não conhecem a novidade de Deus. Não conhecem a descida que os leva a tocar a sua mais profunda humanidade, a realidade por onde Deus passa e toca. Toca e cura. Cura e devolve à vida, com um novo olhar. Preciso desta cura que me faz questionar. Sete vezes questionaram o cego sobre o que se passou com Ele, sete vezes respondeu e sete passos deu em direção a si próprio, sete degraus desceu até tocar Naquele que o tinha tocado e curado.

O caminho que faço com Jesus, este caminho até à piscina de Silóe, leva-me a sentir a vida com a bondade com que nos foi dada, a saborear os dias com a paleta de criatividade com que são despertados e saborear seu adormecer na serenidade de todas as noites, a inspirar o perfume da vida dos outros, como Deus perfuma a nossa, a escutar a presença profunda e sempre misteriosa Daquele que está sempre presente no meio de tantas ausências. Este caminho até à piscina de Silóe é vivido em todas as coisas, em todos os encontros e em todas as perguntas ingénuas das crianças.

David foi escolhido para cantar a bondade do Senhor. Entre o lusco-fusco dos dias, David teve que aprender a ver a partir dos olhos de Deus, para que os seus salmos se fizessem vida. A verdadeira vida só acontece quando nos deixamos encontrar. David foi homem de muitos desencontros consigo e com Deus, chamado de assassino por Natã que o acusa de matar Urias para ficar com a sua mulher, porque a engravidara. David é chamado de infantil pela filha de Saul, Mical, por ter dançado diante da Arca do Senhor à frente de toda gente. Cada encontro é sempre uma possibilidade de sermos recriados e, de encontro em encontro, os olhos de David são lavados. Quando ficaram cansados com o tempo e a precisar de ajuda para ver o caminho, foi quando mais se fizeram capazes de ver a ação de Deus. Viu como foi moldado entre as mãos, sem permitir que o barro da sua condição humana endurecesse no orgulho ou na arrogância. Ao longo da vida, David foi experimentando a água da misericórdia de Deus, do amor de Deus que tudo cria e recria nos Seus dedos, a darem forma ao barro de que foi feito.

Os nossos olhos querem ensinar-nos a ver, mas enquanto não descobrirem que estão cegos, nunca serão capazes de aprender a ver com profundidade. Precisam de saber descer, de ser recriados pelo olhar de Jesus. Esta recriação une estética e ética. A beleza de tudo o que foi criado transforma-se em bondade vivida. A nossa formação e a nossa  educação só nos ensinaram a subir ao Monte Tabor, falta saber descer para encontrar a realidade. A descida implica despojar-se da competição, da rivalidade, do ridículo da posse e da dureza da superficialidade. Tantos irmãos nossos, que vivem em situação dita irregular aos olhos de muitos, viram bem, na sua condição, a sua própria fragilidade e a partir dessa fragilidade passaram a ver a misericórdia de Deus. Esta visão do amor de Deus permitiu que transformassem radicalmente a sua vida, deixando de viver centrados em si. A maior cegueira de todas. Passaram a ver a partir da misericórdia, do olhar misericordioso de Jesus que os acolhe e perdoa. O Cego passa da morte à vida e só está vivo quem passa do viver centrado em si, escudado pelos argumentos da tradição, da religião ou da ciência e dos tempos, para tomar a sua própria vida nas mãos para se fazer responsável, na libertação de quem vive ainda preso à morte. Há que passar desta prisão do egoísmo e descer à vida para beber da água viva.

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